A vovó que me habita

Carla Torres

A vovó que me habita

No último aniversário, ela me disse “É, a gente com 96 anos é uma criança ainda, hein?”. Aquela senhorinha tão frágil quanto bem humorada partiria em breve, mas seguiria falando cada vez mais firme comigo

Quem acompanha Jogo de Cintura sabe o quanto a memória de minha avó me move, comove, mobiliza, conforta e faz rir. Aliás, rir alto certamente é a principal herança que ela me deixou. E pelo que sei, desenvolvi uma fixação por vovó desde antes do que me lembro. Cissa faleceu em abril de 2020, e eu nunca cansei de ouvir as histórias dela todas as mil vezes que contou cada uma. Entre as mais recorrentes, e que arrancava as mesmas gaitadas de sempre, estava uma sobre o dia em que, pouco tempo depois de ter aprendido a andar, passei a renguear enquanto a acompanhava pela casa.

Aquele era um dos inúmeros “dias na casa da vó”, no melhor estilo “colônia de férias”, de que quase todo neto que mora na mesma cidade da avó desfruta.  Preocupada com meu sintoma, ela passou o dia a apertar meus pés, dedos, juntas, pernas, medir a temperatura, olhar a garganta, esbugalhar a pálpebra inferior para ver se algo de anormal havia ali. A cada partezinha testada, perguntava “doi aqui?”. E embora eu já falasse muita coisa, parece que a melhor habilidade àquela altura era andar, mesmo, pois eu segui com o “quadro” o dia todo, mas não dei muitas explicações sobre o que eventualmente doía. Precisou minha mãe chegar no fim do dia para notar que eu estava, na realidade, imitando a Cissa. E notou porque, depois de uma conversa inicial entre elas naquela noite, vovó levantou do sofá e eu prontamente resolvi seguir minha diva inspiradora. Já sabendo do enigma do dia a ser desvendado, minha mãe gritou “Essa guria tá é te imitando, mãe!”. Pelo que  soube, todos na casa caíram na gargalhada, principalmente a Cissa, que gostava de uma boa “anedota” pra contar… Guardou aquela na caixinha das memórias e repetiu ad infinitum.

Vovó teve paralisia infantil, e desde então puxava levemente a perna. Com o passar do tempo, a característica ficava cada vez mais evidente. Em minha inocência, sem saber o que seria considerado bonito, feio, certo ou errado, eu a imitei assim que pude andar. Aquela atitude foi como um prelúdio de muitas coisas. E agora aqui, escrevendo, fico imaginando desde quando estaria tramando tal atrevimento. Em nossas tantas diferenças, éramos, afinal, muito parecidas. Lá pelos sete anos, eu cheguei a dizer “quero ser velhinha, só pra andar de graça no ônibus”. Não era o ônibus, muito menos a gratuidade… Era o que ela fazia, podia fazer; era o jeito Dercy Gonçalves de ser, dizendo o que queria e não levando pra casa o que não queria; era uma liberdade que ela se dava e que eu admirava. De certo modo, eu achava que ainda não tinha chegado a minha vez, mas que “um dia chegaria”. Lembro bem que tinha em mente um lugar, um momento, uma idade a partir da qual eu “poderia” ser como ela, ter aquela autonomia, não importava o que acontecesse ou o que a vida era aparentemente. Na mente da Cissa, ideias borbulhavam todos os dias. Com o passar do tempo, a adolescência e a vida adulta que me chegavam, fui entendendo que ela era inclusive avant-garde em relação às próprias filhas. Mamãe e titias que me perdoem, mas a cabeça dela era muito mais aberta. Enquanto isso, as condições ideais para eu manifestar meu lado Cissa, a meu ver, nunca se apresentavam.

Eis que quando vovó se foi, aos 96 anos, eu estava por completar meus 37, e parece que só ali me dei o “aval” para ativar o mood Cissa. Mais do que isto, fui praticamente lançada nele com uma força que a vida não manifestou nem nos meus piores dias do primeiro retorno de Saturno. Quem tem alguma curiosidade sobre astronomia, deve saber que uma volta completa de Saturno ao redor do Sol leva em torno de 30 anos. Já quem crê na astrologia associa esta primeira volta que acompanhamos na vida a um período bem delicado, cheio de choques de realidade entre o que vivemos até então e o que faz sentido de fato para cada um. Tem até quem associe a formação do famoso “Clube dos 27” à tal fasezinha infame. No meu caso, foi traumático. Só que perder a vó naquele início de pandemia, e ainda receber a orientação de que o melhor era não ir me despedir pessoalmente, foi como levar – de novo e de uma só vez – todos os golpes que a vida já tinha me desferido até então.

Naqueles dias, eu tinha fortes sintomas do que não sabia se era gripe, e, assim, havia a possibilidade de contaminar toda a velha guarda que lá estava. Claro que não poderia conviver com isto, caso o pior acontecesse, afinal, aquele mal causado pelo Coronavírus tinha um pouco mais de um mês por aqui, não havia sequer informações muito claras a respeito, menos ainda vacina. Não fui me despedir da vó, e não gostaria de relembrar, depois de hoje, o que senti. Já levei isto para terapia e francamente ainda não sei se está tudo bem, talvez nunca vá estar. Só sei que, a partir daquele dia, retirei-me do limbo que estava habitando, mesmo depois dos calos que a primeira volta de Saturno deixou. A partir daquele dia, é como se a velha Cissa me espetasse a cada vez que minha dignidade sente sombra de ameaça. As “vozes da minha cabeça” passaram a dizer coisas como “Mas que desaforo, nem dá conversa!”, “Te retira daí já!” ou “Não tenho mais idade, nem paciência pra isto!”.

De fato, minha disposição em topar o que não me faz bem passou a diminuir dia a dia. Em terapia, entendi que, por mais que tivesse perdido muitas pessoas queridas e amadas até então – incluindo meu avô, cerca de cinco meses antes – foi só quando minha “mãe grande” se foi que eu consegui entender o quão efêmera e preciosa é a vida. Entendi que muito dela não vivi em plenitude, permitindo que meu espaço fosse invadido por muitas pessoas, coisas e situações até então. E isto é algo muito pessoal, não me interessa aqui se estou “certa” ou “errada”. É o meu processo.

E mesmo nesse eterno work in progress, nessa tela que nunca termino de pintar, consigo enxergar algumas coisas muito minhas, que me fazem sentir confortável como nunca antes. É como se aquele abraço que a vó me dava tivesse passado a ser dado por mim mesma. E digo isto porque lembrei neste instante algo que uma amiga disse ao perder a mãe: “Quando a mãe se vai, é como se a gente tivesse que aprender a ser mãe de si mesma”. Não era minha mãe, mas era minha avó, a “grandmother”, a “mãe grande”, como gosto de dizer, ou, ainda, inventada neste instante, a “arquimãe”.

Neste abraço, cabe hoje uma coragem que eu não sabia que tinha, cabe a aceitação de minhas incompletudes e defeitos. Cabe aqui também o reconhecimento de meus esforços, o consolo quando de minhas derrotas e meu aplauso para as pequenas ou grandes vitórias cotidianas. Cabe nele a autonomia e a autoridade de quem “já viu este filme”; cabe também a consciência de quem, quanto mais sabe, mais sabe que nada sabe, e portanto entende que ainda há muitos “filmes” para ver. Em meio a tudo, o percurso tem sido enriquecido por inúmeros encontros com novos e reencontros com velhos pares, além de validações de experiências que estavam em latência às vezes uma vida toda. É como se eu já estivesse “andando de graça no ônibus”, mesmo que cronologicamente ainda não possa, entende? É que na minha viagem interior, o passe é livre. Acho que sempre foi, mas eu nunca tentava. Voilà!

E a despeito de uma cultura que rechaça o velho e seus sinais, como rugas e cabelos brancos – que eu aliás já tenho e chamo carinhosamente de “luzes da vida” – ando sintonizando referências como a atriz Laura Cardoso e a designer e ícone de moda Iris Apfel. São mulheres que valorizam cada marca esculpida pelo tempo em si mesmas e nos mostram como pode ser ir além de todos os limites que alguém, em algum lugar, disse que temos ou que precisamos ter. Em um país que envelhece, é preciso, afinal, entender minimamente o que nos espera e sobretudo como pode ser vivido este tempo (todo) que nos resta. Por falar nisto, vêm aí os meus próximos retornos de Saturno, lá em torno dos 60 e, depois, dos 90 anos. E dizem que o segundo pode vir com um peso crítico que o primeiro não tem. A boa notícia é que, se sobrevivermos a ele, chegaremos ao terceiro, conhecido como o momento da partilha de sabedoria depois de tantas voltas que a vida deu. Talvez venha daí o meu fascínio pela velhice, por aqueles que viveram muito e têm tanto a ensinar.

E, creia, depois de tudo que compartilhei hoje, acho que esta coluna não acaba aqui. “Me julgue!” É que acho que só terei conhecimento de causa para falar da vovó que sou por dentro quando o for por fora também. Mas, como eu ando me dando certas liberdades nos últimos tempos, ousei pisar hoje neste terreno tão delicado. Também, né, o mínimo que se espera da minha pessoa por aqui é coragem pra encarar as sinucas de bico da vida, afinal eu sou a moça do Jogo de Cintura. AINDA moça, claro. Isto enquanto nino a minha criança interior, negocio com a minha adulta e cultivo a minha velhinha, que ainda se delineia. Pra minha diva inspiradora, minha primeira referência, fica meu recadinho carinhoso: Tô indo, vó, tenho muito feijão pra comer ainda, e tô sem pressa de chegar, mas tô indo! Um dia eu te alcanço!

Carla TorresTenho 39 anos, sou gateira e cachorreira. Falo muito, mas escuto e observo mais ainda. Natural de Porto Alegre, sou jornalista e mestre em Comunicação Midiática pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e doutora em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com estágio doutoral na Sorbonne-Nouvelle/ Paris 3. Atualmente curso MBA em Marketing Digital. Como pesquisadora, atuo no Laboratório de Investigação em Imagem, Cinema, Foto, Vídeo e Design (UFSM). Sou consultora em pesquisa e mentora em comunicação e expressão oral, locutora comercial e voice artist. Atuei como professora universitária entre 2008 e 2021. No Grupo Diário, produzo e apresento os programas Jogo de Cintura e Companhia CDN. Você me encontra pelo perfil @carladoyletorres no Instagram. Grande abraço!

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